BALADA DO LOUCO

This is the strangest life I have ever known.

quarta-feira, março 30, 2005

O homem invisível

A cidade de Embu, onde morei e para onde voltaram todos os meus irmãos e meus pais, sempre foi um ponto de convergência de artistas, pintores, boêmios e outros loucos. Algumas histórias não podem ser contadas, sob pena de arruinar famílias sólidas e -- acreditem! -- deixar muita gente estupefata. Portanto, vou contar o que pode ser contado.

Contado mas não visto. Porque em Embu tinha o homem invisível. Ele era um negro que não falava com ninguém. Andava por todo lado, fazia o que bem entendia e as pessoas se divertiam com aquele comportamento. Às vezes sentava num banco da praça, braços abertos e pernas cruzadas. Ficava ali horas e horas virando a cabeça de um lado para o outro, acompanhando o vai e vem das pessoas. Quando sentia fome, ia até uma das padarias, pegava alguma coisa e saia comendo tranqüilamente. Era invisível.

Forrest Gump tupiniquim, era raro vê-lo parado. Caminhava sempre com um passo ligeiramente acelerado, como se tivesse hora marcada para resolver algo importante. Nos passeios no mato, atrás da Fonte (Água Mineral Embu), lá estava o homem invisível caminhando na direção oposta. Na estradinha de terra da fazenda de um amigo, quilômetros longe do centro: o homem invisível. Comendo pizza no Largo da Matriz e o homem invisível passava quase esbarrando na nossa mesa. Na BR 116, voltando de São Paulo: o homem invisível. Estava por toda parte. Era o homem invisível mais visível de que eu tive notícia.

Certa vez encontrei-o em uma padaria em Copacabana. O proprietário partia pra cima dele, pois tentava sair com um pão sem pagar. O homem invisível se assustou(!): Ué, você tá me vendo? Mas eu sou invisível...! Pedi ao português que o deixasse ir e paguei por ele. E lá se foi o pão que flutuava pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana, desaparecendo aos pedaços.

Allan

sábado, março 05, 2005

Rock na periferia

Viver na periferia de São Paulo, por incrível que pareça, é como estar na idade média. Não fosse o plim plim da TV que ecoa de algumas janelas de vez em quando e os ringtones de péssimo gosto dos celulares pré-pagos que estão em cada canto, poderia muito bem ser 1200 d.c. ou qualquer data próxima. Nem é só pelo olho-por-olho-dente-por-dente que impera, mas principalmente pela mentalidade tacanha das pessoas. As igrejas ditam comportamentos e cobram as indulgências, e ai de quem não pagar ou andar na linha, porque o inferno está logo ali.

Um dos maiores pecados por aqui sempre foi gostar de rock’n roll. Lembro de momentos e diálogos impagáveis. Quando começava o culto na rua de trás e o pastor começava a pedir 10,00 para quem quisesse garantir um lugar no céu eu colocava as caixas do meu "3 em 1" na varanda e ligava Black Sabbath no último volume. Tornei-me querido e popular por atitudes assim, e não foram poucos os diálogos como este:

-- Vovó disse que você vai para o inferno porque ouve essas músicas!

-- Olha, se no inferno eu ficar livre de ver sua avó e ainda tiver boa música, não vejo a hora.

-- Mas ela disse que quem ouve isso fica louco!

-- (gargalhadas)

Tempos depois um dos garotos do bairro começou a sair com a minha turma. E não é que ele nem tinha comprado ainda a primeira camiseta do Iron Maiden e já estava andando na rua dando tapas na própria cabeça, correndo em círculos e gritando com pessoas invisíveis? Se me lembro bem ele esperava as senhoras saírem da igreja para correr atrás delas. O cara ficava horas sentado no sofá da minha sala olhando para a parede sem dizer nada ou se mover, e eu pensando que só podia ser praga da avó da garotinha.

Pelo que sei, ele está completamente curado hoje –- seja lá o que isso signifique –- e a música não teve nada com a doença dele, ao menos eu espero que não. Mas não me sai da lembrança um dia em que eu voltava da escola de ônibus e, quando passei a catraca, ouvi duas pessoas desconhecidas comentarem: olha ai, este é o rapaz que deixou fulano doido! Até hoje eu prefiro o inferno a toda esta “sanidade” que me cerca.

Marcos Donizetti