BALADA DO LOUCO

This is the strangest life I have ever known.

segunda-feira, janeiro 31, 2005

Aliens

Jorge, aliás, Jorjão, era realmente muito alto. E forte. Quando alguém ousava contrariá-lo, gritava: "Olha que eu sou louco! Não respeito ninguém. Arrebento tudo!" Mas não era louco coisa nenhuma. Apenas se aproveitava do seu tamanho para intimidar todos. No cartório do fórum, onde trabalhava, gritava até com o juiz. E todos tinham medo dele. Principalmente quando gritava "...sou louco! ...arrebento tudo!" Ficava vermelho e parecia aumentar de tamanho. Gesticulava os braços e caminhava em direção às pessoas.

Sua mulher pedia que ele se acalmasse e entrava nafrente, tentando impedir que ele avançasse sobre as pessoas. Ele a empurrava e ficava mais vermelho ainda. E gritava. "Olha que eu sou louco..."

Um dia, acordou chorando: "tenho medo..." e ninguém conseguiu descobrir do quê. Nunca mais foi o mesmo. Foi internado. Quando os hospícios fecharam, sua mulher levou-o para casa. Não é perigoso, pode ser tratado em casa. Passa os dias sentado, cabeça e ombros encolhidos. Às vezes chora. Não é mais Jorjão, só Jorge. É louco e não assusta ninguém.

*


Dunga era um hippie. Alto, forte e manso. Paz e amor, bicho. Conheci-o no início dos anos setenta, quando ele fugia da clínica que recuperava viciados em drogas. Não era exatamente maluco, mas creio que as substâncias que ele consumiu provocaram uma mudança nas suas capacidades mentais. Fugia da clínica às sextas, dava umas voltas, consumia álcool ou outra coisa e era recuperado no sábado ou no domingo, antes do horário de visitas. Era uma verdadeira enciclopédia do rock. Sabia tudo sobre a história do rock e seus principais personagens. Dedilhava a guitarra imaginária de Hendrix e imitava a voz rouca de Janis Joplin: "Oh, Lord, won't you buy me a Mercedes Benz"...

Quando terminou seu período na clínica, continuou morando no Embu. Dizia estar fora das drogas, mas os efeitos eram irreversíveis. Fazia flautas de bambu como ninguém e as vendia na feira de artesanato aos domingos. As flautas tinham uma afinação perfeita. Certa vez sua filha foi visitá-lo. Era advogada ou arquiteta. Mas ele havia rompido com o passado. Abraçou a filha e o marido dela. Passeou de mãos dadas. Chorou. Mas jamais foi procurá-los na vizinha São Paulo.

Dunga tinha uma sua casinha, fazia um pouco de dinheiro, mas gostava mesmo era de passar o dia perambulando, pedindo esmola e dormindo no banco da praça. Às vezes alguém se irritava e batia nele. Chorava e corria para a padaria, onde o proprietário o protegia, além de dar-lhe comida e uma cachacinha. Era incapaz de fazer mal a uma mosca. Enorme, mancava da perna direita, cabelos e barba compridos. Quando ficou doente, levaram-no para o hospital e parece que aceitou ajuda da família. Depois, voltou. Perambulava por toda a parte. Às vezes incomodava mesmo. E escolheu como último leito o banco ao lado da igreja. Paz e amor, bicho.

*


Das Dores era uma mulata bem apessoada (na época, se dizia assim). Num daqueles longínquos subúrbios do Rio, morava com a família. Não a sua família, mas aquela que a havia adotado. Fora acolhida um dia, ainda menina, quando eles cansaram de vê-la dormir sob a marquise da quitanda (na época, tinha quitanda). Ninguém nunca soube de onde ela apreceu. Nem ela. Só sabia o próprio nome: Das Dores. Das Dores ria sempre. Jamais usou as palavras morte, doença ou qualquer outra que pudesse transmitir tristeza ou sofrimento. Apesar disso, fazia comentários que nos permitia entender suas crenças. Quando assistia televisão e aparecia algum ator jovem, dizia: "Tadinho, tão novinho..." A caixa barulhenta que tocava música era a ligação deste mundo com o dos mortos. Quando alguém morria, ia pra lá. O vizinho morrera num domingo, em meio ao programa do Chacrinha (na época, o Chacrinha tinha um programa). No domingo seguinte, apesar do medo que ela tinha do Chacrinha, foi assistir à TV porque queria ver o vizinho, que sempre lhe fora gentil. Não a deixavam usar saias curtas, pois sentava de qualquer jeito. Mas não usava calça comprida de jeito nenhum. Ajudava na arrumação da casa e aprendeu a cozinhar como poucos.

Quando visitava o pessoal do subúrbio, me divertia batendo papo com Das Dores, que não falava coisa com coisa. "Moço, você viu aquela música nova que tá tocando no rádio? Eu que fiz. Mas não quero mais não porque agora tá na caixa. Você já namorou? Quando eu crescer, vou arrumar um homem bem bonito pra casar." Mas ela já era crescida, apesar de moça (na época, existiam moças). E ria o tempo todo. Uma felicidade infantil e contagiante. Um rosto bem feito e olhos grandes. Dizem que ela não envelheceu nem um dia. Continua com a aparência jovem de sempre.

Allan

domingo, janeiro 30, 2005

Osvaldinho

Osvaldinho tinha um escravo. O escravo de Osvaldinho era seu motorista, guarda-costas, servo, companheiro e babá dos garotos de rua que Osvaldinho recolhia em sua casa. Certa vez impediram Osvaldinho de entrar em uma boate. O leão de chácara disse:

-- Desculpe, doutor Osvaldo! Recebi ordens de não deixá-lo entrar.

Osvaldinho, contrariado, ordenou:

-- Escravo, dê um soco nele!

O escravo de Osvaldinho, um metro e setenta, uns setenta quilos e muito mais maluco que o patrão, não esperou uma segunda ordem e deu o soco no grandão. Osvaldinho ainda tentou proteger o escravo e acabou, também ele, levando uns safanões. Entraram na Mercedes e sumiram na noite. Terminaram a madrugada em uma delegacia, por terem despejado dois galões de piche na enorme porta de madeira da boate, antes de atearem fogo.

Osvaldinho gostava de fazer coisas esquisitas. Osvaldinho era esquisito. Decidiu correr toda manhã, mas tinha preguiça. Acordava o escravo e mandava-o ir de carro atrás. Quando cansava, entrava no carro e continuava o passeio. Uma madrugada, cansado do cooper, decidiu entrar no carro e disse que queria dirigir. Como não pegava bem ter o escravo como passageiro, mandou-o ir a pé, correndo atrás do carro. Rodou outras duas horas, seguido pelo escravo, que não tinha porte atlético e ainda levava pelo corpo as marcas de uma surra da noite anterior. Osvaldinho dizia que o importante era dar o primeiro soco e o escravo vivia apanhando na rua. "Escravo, bate nele!"

Adorava quando forravam a Rua Augusta com carpete, antes do Natal. Pegava um cavalo e ia dar umas voltas sobre o carpete colorido. Certa vez estacionou um Porsche dentro do saguão do aeroporto de Congonhas, meteu as chaves no bolso, pegou um avião e partiu.

Osvaldinho sempre arrumava confusão. Quando passava dos limites, esqueciam a influência da família rica e o punham pra fora. A família pagava pela distância de Osvaldinho. Em alguns locais ele simplesmente era proibido de entrar. Osvaldinho se vingava. Foi numa dessas que Osvaldinho teve a idéia que mais me divertiu. Proibido de entrar no fechadíssimo e elitizado clube por dois meses, Osvaldinho reuniu a molecada que ele abrigava em sua mansão, ordenou ao escravo que comprasse um lote de Alka-Seltzer e sacos de estopa. Com ajuda dos meninos e do escravo, Osvaldinho encheu alguns (alguns!) sacos de estopa com o Alka-Seltzer devidamente livre do invólucro, alugou um helicóptero e jogou os sacos dentro das piscinas do clube, numa ensolarada tarde de domingo.

Mas como até mesmo a magia dos loucos é insuficiente para driblar a fatalidade, nem o escravo conseguiu livrar Osvaldinho da morte. Morte natural. Coisa esquisita para um sujeito esquisito como Osvaldinho. Mas o escravo continua vivo. Com a morte de Osvaldinho, o passe do escravo foi disputado a tapas.

Allan

sexta-feira, janeiro 28, 2005

O Gigante do Pé-de-feijão

Talvez minha mais antiga lembrança do diferente seja o Manelão ou "Gigante do pé-de-feijão", como nós, crianças, o chamávamos. Se não for a mais antiga é certamente a que mais me intrigou, tanto pela familiaridade, éramos da mesma vizinhança, quanto pelo fato de sua loucura ser tão próxima do normal, próxima de nós mesmos. Mais que compaixão, essa proximidade gerava repulsa nas pessoas. Ninguém queria se ver remotamente espelhado em tão miserável figura. Imagem viva de tudo que consideraríamos fracasso, ele parecia viver um passo além da linha de retorno.

Era um homenzarrão. Grande, gordo, careca, mau encarado e, principalmente, feio, muito feio. Ninguém nunca o viu de banho tomado e a barba grisalha estava eternamente por fazer. Seu mau cheiro era lendário. Amarrava as calças com uma corda - desnecessário, já que calça nenhuma poderia ser mais larga que sua cintura - e usava sandálias franciscanas que pareciam prestes a explodir com a pressão dos pés inchados. Com esse aspecto é fácil entender o apelido que demos a ele. Sua figura era a do próprio vilão da estória infantil.

Solitário, não tinha família, amigos, nem bicho de estimação. Eu nunca soube muito sobre ele ou seu passado. Ninguém me disse, nunca perguntei. Desde que me entendo por gente ele já estava lá, cuidando do seu sebo. Sim, ele era comerciante, tinha casa e loja no mesmo prédio. E mais, tinha diploma pendurado na parede. Bacharel em Direito. Formado pela mesma faculdade na qual estudei anos depois.

Sua casa e loja eram velhos, sujos, mofados e fediam tanto ou mais que o dono. Mas, invariávelmente, era para lá que, não sem protestos, todos se dirigiam depois de procurar desesperadamente por um livro e não encontrar. Ele tinha de tudo. Acho que se pedissem a Bíblia de Gutemberg era capaz dele abrir um alçapão no assoalho e tirar dois exemplares. Era para isso que ele vivia, acumular livros e depois vendê-los. Sempre com uma raiva que quase te fazia desistir da compra. No fundo talvez fosse isso que ele quisesse.

Louco aos olhos de todos, mas não do tipo de trancar em hospício, sua loucura era uma tristeza imensa que o fazia, já morto, perambular entre os vivos. Num dia qualquer que ninguém soube precisar ele se mudou. Talvez algum cliente mais assíduo tenha notado de pronto, mas, a maioria não notou. Só notei semanas depois, quando, passando por lá, ví a placa de "vende-se" colocada pela imobiliária. Para onde foi? Não sei. Ninguém disse, ninguém perguntou.

Roger

sexta-feira, janeiro 21, 2005

Inps, um Louco Multifacetado

Inps era peão de obra e não há nenhuma história confiável do que o teria levado a loucura, porém uma coisa é certa, teve uma primeira fase safada, de pegar em peitinho de moça e descer rua assoviando prá dentro atrás das mulheres. Nada que algumas bordoadas e doses cavalares de remédios não tenham brochado, afinal ficou convencionado que a putaria e a safadeza são só para os sãos.

Inps passou então a ser um louco tranqüilo nas ruas de minha cidade, até que seus pais conseguiram aposentá-lo por deficiência mental. A condição de pensionista passou então a ser sua maior preocupação, o que depois de descoberto pela molecada tornou-se sua tortura. Ameaçavam-no a toda hora com a perda da vantagem, ao que Inps respondia primeiro com o socorro do prefeito (só ele poderia tirá-lo a sinecura), depois do presidente até que, confiante, respondia que só o papa poderia acabar com sua renda. Mas nada deixaria em paz a turba, que logo inventou, ou descobriu, que o bebão marido de sua irmã era quem consumia toda a sua renda. Inps rebatia incontinenti que era sua mãe que recebia o dinheiro, sem conseguir convencer a ninguém, o que o deixava louco (ops!).

Inps era um homem só. Zanzava pelas ruas, fazia seus pedidos, era abordado pelos brincalhões de plantão, até que um dia, estranhamente, sua vó começou a segui-lo a todo lugar que fosse, para evitar que bebesse. Claro, esqueci de dizer que Inps gostava de virar um copinho, o que combinado com os remédios dava bastante trabalho aos seus familiares. Era estranho ver aquela velhinha, extremamente magra, vestido estampado e sandálias na mão seguindo aquele maluco cidade afora. Quando Inps entrava nas lojas para pedir, a velhinha ficava na porta, como um cãozinho obediente a balançar suas sandálias. Deve ter morrido, porque de repente desapareceu, e a morte, por sinal já era a um bom tempo a nova fixação do nosso herói, que fixações parecem ser o alimento dos loucos.

Pois Inps ultimamente não perdia um enterro na cidade. Estava a casa em desespero, os filhos chorando, a viúva inconsolável, quando chegava Inps e, para constrangimento de todos, perguntava a um como tinha sido a morte a se aquela era a viúva, se tinha deixado dinheiro e explicando que quando morresse ia ser enterrado em um caixão de madeira com janelinha de vidro, mas não agora, claro.

Inps tornou-se o terror dos velórios e entrava nas lojas já anunciando as mortes do dia. A figura ainda gira em nossa cidade, importunado por uns, importunando a outros, burilando sua loucura e em busca de novas fixações.

Reginaldo Siqueira

Os Cinco Loucos De Que Me Lembro de Supetão

- a motinha do Magal, barulhos e guspes pela banguela, mãozinha da pinga acelerando, mãozinha da flor na embreagem, ele levava quem quisesse carona, na sua Honda (sem sobrenome) imaginária, era só pedir pra ele ligar, a motinha nunca negou fogo;

- as pedradas e palavrões voando certeiros na molecada, cada vez que alguém gritava: vovozinhaaaaaa... era a única palavra que não podia ser ouvida e adivinha qual a mais berrada. E a vovozinha corria surpreendentemente ligeira, quase alcançou o Manabu;

- o silêncio de seo Zé, ex-rico, ex-influente, ex-amante, o mudo seo Zé, lembrava de longe o Arafat, se a barba fosse maior e desgrenhada. Os olhos mais tristes que já vi. Desconfio que não relou no gargalo da pinga, durante os anos em que passou por onde eu morava, sempre no mesmo nível que ela parecia estar. Um dia não sei o que falei, ele cantou uma música, sem parar de andar nem olhar para os lados. A cada dia falei a mesma coisa, agora esquecida. Era o botãozinho on, seo Zé cantou diariamente até o dia em que ninguém cruzou a frente de casa, no horário habitual, o dia do nunca mais;

- o saco de Luiza, inexistente para o mundo e amiga da minha avó. Terror da infância socorrense, se a promessa de deixar-nos no orfanato desse errado, a última ameaça era sermos entregues pra Luiza pôr no saco junto com todos os seus pertences e comer devagarinho;

- o sinal do cara do saquinho, agora esqueci o nome: poesia inimaginada e quieta feita com as mãos, o cara do saquinho percorreu a vida com um saco plástico transparente na mão direita, fazia com o saquinho e o ar o sinal do infinito, na frente do peito. Jamais deixou de rir.

Os cinco loucos dos quais me lembro de supetão. Alguns de Socorro, outros de Atibaia. Busquei alguma história de cada, mas vejo que todos tiveram apenas a sua pré-história, trocada por algum motivo (só imagino obviedades) por um cotidiano binário, menos que isso até, pois só havia uma tecla: um 0 ou um 1. Só havia a motinha, a pedra, a pinga, o saco e o saquinho. O resto dá pra se imaginar o quanto doeu.

Madureira

quinta-feira, janeiro 20, 2005

Morreu Gagarín!

Ano de 1968. Eu caminhava devagar, indo para a escola, quando vi, ainda longe, alguém que vinha gritando pela rua. Era um mendigo que costumava perambular ali por perto do mercado da cidade. Nem sei se era mesmo louco.

De longe, não dava para entender o que ele dizia. Mas quando me aproximei ouvi a voz triste do mendigo que hora gritava, hora sussurrava: Morreu Gagarín! Morreu Gagarín! Morreu Gagarín! Eu, que não conhecia Gagarín, imaginei que ele talvez chorasse algum parente ou amigo.

Dias mais tarde, vim a saber que o Gagarín era Iuri Gagarin, o primeiro homem a ir ao espaço e a orbitar a Terra, em 1961, e que havia morrido naquele dia de 1968. Lembrei-me de imediato do louco e da tristeza que ele demonstrara ao chorar por Gagarin.

E de lá para cá, quantas vezes não me peguei tentando entender por que, para um homem de rua de uma cidadezinha do interior do Estado do Rio de Janeiro, a morte de Gagarin tinha sido assim tão importante... Que sonhos aquele mendigo teria acalentado, que mundos ele teria sonhado, que viagens espaciais ele teria desejado, a ponto de estabelecer uma ligação tão forte com o astronauta soviético morto.

Bear

quarta-feira, janeiro 19, 2005

Canabrava Era o Nome

Ela dava aula de música. Senhora de uns 68, 70 anos. Cabelos brancos, lisos, 2 pares de óculos nadando nas cercanias do pescoço. Ora um, ora outro, eram levados aos olhos, dependendo da distância do olhar. Nós a achávamos louca. Tínhamos uns 13 anos. Hoje 13 anos ganha salário de top model ou mata de metralhadora, dependendo da miséria envolvente. Naquela época, éramos, aos 13 anos, umas bobocas, virgens, a maioria de boca também, longe até o primeiro beijo. Mas Dona Clarice era chamada de louca. No frio, naquela sala de aula enorme, ela metia os pés dentro da lata de lixo (depois de jogar o lixo no chão) dizendo que era pra esquentar. Mandava-nos solfejar o Ouvirandu... Até hoje me lembro que decorei as notas: do, fá, mi, lá, sol... Um horror!

Juntava as 4 classes da mesma série no anfiteatro e nos obrigava a cantar "foi boto sinhá, foi boto sinhô..." em 4 vozes diferentes. Ficava parecido com o que várias matilhas de lobo fariam juntas em noite de lua cheia...
No piano a velha Clarice arrasava. Acho que é por isso que eu me voltei pra percussão. Ela martelava as teclas com perícia de tocador de atabaque em noite de Oxum.

Passou a vida inteira dando aula de música. Morreu dando aula, praticamente. Em escolas estaduais. Botando os pés na lata de lixo no frio, usando dois pares de óculos e se confundindo toda na hora de escolher qual, trocando os nomes dos alunos, tendo uma fixação absurda pelo tal do boto, sendo muito paciente e generosa com todos.

Uma louca, definitivamente.

Mansa, muito mansa.

Maray Furnari

segunda-feira, janeiro 17, 2005

O Cego

Ele não era exatamente cego, era louco. Não falava com ninguém, preferia falar sozinho. Às vezes trombava com as pessoas e sequer pedia desculpas: não as via. Ou fingia não ver. Assustava-se quando acontecia um esbarrão mais forte. Fazia cara de apavorado, com os olhos arregalados, como a procurar alguém que jamais encontrava. Xingava.

Mas será que eu realmente estou ficando louco? Porque não vejo ninguém e os carros e ônibus continuam a passar vazios? Onde foram parar todos?

Tinha uma aparência mal cuidada, com a barba sempre por fazer e as roupas amarrotadas. Não chegava a ser maltrapilho, apenas parecia abandonado. Certa vez o vimos sentado no muro do Passeio Público. Passou o dia lá, falando sozinho. Ou com alguém que só existia na sua imaginação. Estou ficando cego!, gritava, às vezes. Outras vezes fazia longos discursos, que ninguém parava para escutar. Tinha sempre um olhar vazio, solitário.

Amigos, onde estão vocês? Se vocês puderem me ouvir e quiserem falar comigo, vou passar o dia aqui, sentado. Vejo os objetos mas não vejo as pessoas. Não vejo vocês. Tudo é real, não me parece um sonho. Por favor, só quero falar com algum conhecido. Estou ficando cego...

Todos mantinham distância dele, sempre mau humorado e a boca cheia de palavrões. Gritava e xingava. A caixa do supermercado tinha medo, muito medo. Ele chegava, perguntava se ela tinha visto mais alguém e, diante do silêncio dela, xingava e fazia suas compras, falando o tempo todo. Eram coisas simples, as que ele comprava. Frugais, espartanas. Diziam que era aposentado e que foi parando de falar com as pessoas aos poucos, depois da morte da mulher. Não tinha filhos ou parentes conhecidos. Outro com quem ele falava era o funcionário do banco. Uma vez por mês ia retirar dinheiro e passava na frente da fila. O funcionário pedia que aguardasse a sua vez, ao que ele respondia que se o banco estava vazio, não precisava esperar. O funcionário, acostumado, pedia paciência ao cliente junto ao guichê e argumentava que seria mais rápido atendê-lo de uma vez.

Moça, você viu mais alguém hoje? Por que você me olha sempre com cara de quem viu fantasma? E porque essa merda de supermercado fica aberto o dia inteiro se o único cliente na cidade sou eu? Você não fala nada? Puta que pariu! Acho que nós estamos mortos e não conseguimos achar o caminho para sair daqui. Ou os outros é que morreram e nós ficamos sozinhos. Fala alguma coisa, merda! Não, eu não posso estar morto: ainda sinto frio, fome, dor. Mas um dia acabo com essa história!

Ano passado tiveram que chamar a polícia. Às três da manhã estava parado em frente a um pequeno prédio, gritando o nome de um antigo morador. Ignorava os pedidos dos vizinhos que saíram às janelas. Explicavam que o fulano não morava mais ali, que havia mudado para a casa da montanha, depois da aposentadoria como encanador. Pediam que voltasse pra casa. Mas ele não ouvia ninguém e continuava a chamar: Eu sei que você está aí. Nem precisa responder, mas, por favor, vá a minha casa consertar o sistema de aquecimento, antes que o inverno chegue e me mate de verdade. Quando a polícia chegou não o encontrou ali.

No dia seguinte foram entregar a intimação da queixa registrada pelos moradores. Como sempre, não respondeu. Três dias depois, com autorização judicial, abriram a porta do seu pequeno apartamento. Encontraram tudo arrumado e limpo. Os poucos móveis, lustrados. Sobre uma escrivaninha, maços de cartas velhas amarrados com barbante. Tudo cuidadosamente arrumado. Dele, nem sinal.

Nunca mais foi visto ou se teve notícias dele. Chegaram a iniciar uma investigação, mas ninguém soube dar nenhum indício. A ação da justiça foi interrompida, abandonada.

Talvez tenha, finalmente, encontrado o caminho que procurava. Ou nós é que ficamos cegos.

Allan

domingo, janeiro 16, 2005

Apocalipse Now

João Antônio tinha trinta e três anos e uma certeza: era o Cristo que retornara para julgar os vivos e os mortos.

-- É, o Cristo do Apocalipse, conhece, doutor? E desfiou as razões que fundamentavam sua certeza, tal um matemático demonstra um teorema ou um filósofo deduz com silogismos perfeitos. Primeiramente, a idade.

-- Trinta e três anos tinha o Cristo quando foi crucificado e eu aqui estou continuando sua trajetória terrena.

-- Além disso, o número do medidor da companhia de eletricidade em minha casa termina com uma sequência de seis, a da Besta do Apocalipse: 666. Descobri quando fui fazer uma reclamação na CEMIG e tive de anotá-lo. Foi uma mensagem, um sinal. Um Sinal, com S maiúsculo, sabe, doutor? A gente precisa ler os sinais, decifrar os códigos que estão à nossa volta, como fez Nostradamus. E mais: nasci no Brasil, cujo nome primeiro foi Terra da Santa Cruz. A cruz é a síntese: cruzamento do horizontal com o vertical, tempo e espaço. Pois o meu sobrenome, o senhor já anotou aí, é da Cruz. João Antônio da Cruz. Outro dia, uma kombi parou de repente num cruzamento. Bati na traseira e já saí gritando seu estúpido, por que parou sem avisar? O motorista saiu sorrindo, na maior calma. Vestia uma camiseta de crente, na qual estava escrito Jesus te ama. E a placa daquela kombi era: JAC-1972. Era a o ano de meu nascimento e minhas iniciais, doutor! Só não vê quem não quer.

-- Agora, o senhor me diga, o senhor acredita que eu sou o Cristo? Não quero palavra de psiquiatra, porque a ciência é uma coisa, religião é outra. Fale como pessoa humana, doutor.

-- Você é quem diz, João Antônio.

Outras provas foram descritas, fundamentadas em fatos vivenciados e interpretações que eu chamaria de delirantes. João insitiu mais uma vez:

-- Vou perguntar de novo, ou o senhor responde ou Deus mesmo enviará um sinal. O senhor acredita?

Neste exato momento, uma pomba, das muitas que infestam os arredores, pousa sobre o peitoril da janela.

-- Tá vendo? Nem precisa responder. Eis o sinal. Quando chegar a hora, o senhor saberá.

Cláudio Costa. Psiquiatra & Psicanalista, além de blogueiro.

sábado, janeiro 15, 2005

Maria Primavera, a Louca das Flores

Há alguns bons anos, em Lorena, cidadezinha na época até que pacata do interior de São Paulo, uma figurinha pitoresca andava pelas ruas.

Flores nos cabelos, nos pulsos e até na fina canela. Duas acentuadas manchas de rouge vermelho intenso na face, no centro, um sorriso infalivelmente impresso escancarando as gengivas de um carmim escuro. Sua labuta diária era vasculhar latões de lixo -- na época não existiam os sacos de reciclagem da modernidade -- catando objetos de cores fortes que ia acumulando num carrinho de madeira bem rústico.

Nome de registro: Dolores, pelo que contavam os mais antigos. "Maria Primavera" era seu codinome.

Ninguém nunca soube como e de onde ela surgiu porque nunca dizia coisa com coisa e então foi ficando por isto mesmo. O fato é que ela só incomodava mesmo alguns rabugentos comerciantes que esbravejavam porque ela espatifava todo o lixo nas calçadas, o que incomodava e espantava a freguesia. De resto, todos respeitavam seu estilo próprio de ser. Tinha se tornado um hábito já, e o hábito é o precursor da indiferença.

Numa tarde de verão foi encontrada, caída no chão. Tentaram reanimá-la, mas nada mais pôde ser feito.

A ausência de passado, parentes, amigos fez do ritual de suas despedidas algo pálido, opaco, sem honrarias ou homenagens. Se sertaneja fosse, Severina seria. Ausência absoluta do colorido das flores primaveris.

Ficou ali grande parte do tempo só. Alguns poucos curiosos entravam, observavam e saíam rapidamente, reforçando a tese de que há pessoas cuja especial predileção sado-masoquista é visitas a velórios.

Sua última imagem, a que restou, se tingiu de um inóspito inverno.

É a vida... que num certo sentido embute a morte.

Sônia Maria

Natação Noturna Como Terapia

Em meados do mês de julho de 2004, tive o prazer de participar de uma excursão a Porto Seguro, Bahia. Passei uma semana hospedado lá, e nas 4 ou 5 festas que fui, vi muita loucura.

A viagem foi uma confraternização dos concludentes do Ensino Médio, mas não só do colégio onde eu estudava, e sim de vários outras instituições daqui de Recife e de outras partes do país.

Na época que fui, estava ocorrendo um determinado fenômeno climático, que nos fez enfrentar temperaturas baixíssimas -- principalmente pra quem está acostumado com o calorão de Recife. Fazia um frio incrível, quase insuportável. As pessoas iam pras festas com várias camisas e casacos, e caprichavam nas bebidas alcóolicas pra diminuir o incômodo.

Numa das noites mais frias, estava ocorrendo uma festa numa grande casa de eventos, e todos os turistas dali foram. Ou seja, o lugar estava completamente lotado.

A caminho do bar, me deparo com um sujeito tirando a roupa. Parei pra observar, obviamente. Quando estava só de cueca, simplesmente mergulhou de cabeça num braço-de-mar que passava por dentro do complexo de lazer -- e começou a nadar crawl.

Ninguém acreditou. Eu, que já estava um tanto "alto", fiquei rindo sozinho... Descontroladamente, pra falar a verdade.

Depois de um ou dois minutos, o cara foi amolecendo e desmaiando lá na água mesmo. Eu me lamentava por não estar com minha câmera digital no momento.

Logo em seguida, chegaram ao local uns seguranças, mas estes gozavam de boas faculdades mentais, e não se dispuseram a pular. E ficaram só nas bordas, esperando a correnteza trazer o louco nadador.

Então conseguiram pegá-lo, já desacordado, e todos começaram a aplaudir(?). Eu estava constragido porque não conseguia parar de rir, e saí dali.

Os boatos que correram depois foi que ele teve hipotermia mas não chegou a correr risco de morte.

Eu gostaria de encontrá-lo novamente só pra perguntar qual o objetivo daquilo. Seria um protesto? Uma tentativa de suicídio? Vai saber!

Fellipe Vaughan

A Alegria Alheia

Hoje, eu fiz uma coisa da qual muito me envergonhei.

Eram 9 da manhã, eu tinha dormido pouco, já tinha saído de uma reunião e meu destino era passar o dia todo no meu cliente, trabalhando como um mouro. Nada disso é desculpa.

Estava em um daqueles bares de rua, aqui de Jacarepaguá, comendo um joelho e bebendo uma média. Havia umas outras três pessoas no balcão, uma delas um velhinho sorridente, de bigode branco e careca.

O velhinho estava muito feliz. Rindo. Brincando. Fazendo brincadeiras bobas com a atendente. Só me lembro de uma: ele pediu o açúcar e ela respondeu, grosseiramente, que estava no balcão. Ele nem ligou. Começou a fazer uma pantomima de procurar alguma coisa, levou a mão como uma aba sobre a testa e olhava em volta, vendo se alguém estava olhando. Como ninguém lhe deu a menor pelota - eu baixei os olhos, para evitar contato visual - ele continuou: localizou o açucareiro atrás dos canudos e disse, bem alto: "Ahá, eu não tinha visto, estava escondido por detrás essa árvore."

Eu aproveitei para me transferir ao outro lado do balcão, bem longe dele.

Mas foi só chegar lá que bateu a culpa. Eu me senti um verme. Comecei a observá-lo com mais atenção.

Ele tentou brincar com todos. Eu gostaria de poder dizer que sua alegria era contagiante, mas não era. Para vergonha de todos nós, sua alegria era tudo menos contagiante. Era enojante. Ninguém lhe deu atenção. Ninguém reconheceu sua existência. Ninguém trocou olhares com ele. Ninguém retribuiu seu sorriso.

E ele, verdadeiro herói do bom humor, não desistiu. Seu sorriso não morreu. Falou com todos, comentou o noticíario, riu, contou piadas. Absolutamente sozinho.

Finalmente, deu bons-dias sorridentes a todos e saiu. Antes de virar à esquina, ainda falou com um vendedor de cocos. O vendedor de cocos virou a cara e ele foi embora. Inabalável.

Custava alguém ter retribuído o seu olhar? Sorrido de volta? Dado qualquer indicação de que estava ouvindo?

Nenhum de nós merecia a alegria daquele velhinho àquela hora da manhã.

Alexandre Cruz Almeida

domingo, janeiro 09, 2005

Nasce Uma Lenda

Cidades pequenas sempre têm seus loucos de estimação. São conhecidos por todos, passam a fazer parte do cotidiano e, quando desaparecem, demora até que alguém se pergunte o foi feito dele, pergunta que raramente tem resposta. São ubíquos e conspícuos, se integram à paisagem e, às vezes, à lenda de cada cidade, como Gentileza atravessou a baía para se integrar à do Rio de Janeiro.

E estes são dias de espanto, porque uma lenda está nascendo em Aracaju.

Ela é uma mulher em seus 50 anos. É negra, mas em algum lugar de sua loucura decidiu que isso pode ser disfarçado. Passa pancake em todo o rosto, e assim cria uma máscara grosseira, óbvia e agressiva. Talvez quisesse se tornar uma boneca de louça, mas a imagem mais fidedigna é a de um aborígene australiano. Se a blusa que está usando deixa os ombros à mostra, ela também os maquia, outra camada grossa de pancake colocada de forma descuidada. Seus olhos, que podem denunciar a si mesma diante de um espelho, estão sempre escondidos atrás de óculos escuros.

Vaga principalmente por centros de compras: shopping centers, hipermercados. Sua loucura é alimentada pelo consumismo de uma sociedade à qual ela não se julga adequada. Não parece comprar nada, jamais; é como um fantasma que contempla, distante e marginal, a lei da oferta e da procura.

Ela já começou a se tornar conhecida, mas ainda causa espanto. As pessoas olham constrangidas, disfarçadas, assustadas ainda; e tentam uma explicação racional, porque ainda não desistiram de entender.

Mas não vai demorar até que desistam de explicações que nunca virão, ao menos não satisfatoriamente, e apenas se acostumem à sua presença. Sua lenda começa a ser criada, e já dizem que ela era professora. É só o começo; ainda é cedo para a lenda tomar sua primeira forma a partir de pequenas informações biográficas. E mais cedo ainda para que dispense até mesmo esses fiapos de verdade, e adquira dimensões fantásticas e irreais.

Para que isso aconteça é preciso que as crianças de hoje cresçam. Porque apenas crianças não se incomodam com a loucura alheia; são elas que vão dar a essa mulher o seu caráter legendário e sua integração à rotina da cidade, ao crescerem com a sua visão bizarra, às vezes fantasmagórica.

Ela tampouco tem um nome. Não é a louca da máscara, nem a maluca dos shoppings. É uma louca pública ainda muito recente, e talvez a cidade tenha crescido demais e não esteja mais preparada para seus loucos. Enquanto isso ela vaga pelos shoppings, pouco se importando com a impressão que causa nas pessoas, porque não são elas que a aterrorizam, é o espelho.

Estes são mesmo dias de espanto.

Rafael Galvão