BALADA DO LOUCO

This is the strangest life I have ever known.

sexta-feira, junho 10, 2005

A louca e o poeta

A Praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião.

Salvador tem um centro divido em duas partes: a Cidade Alta e a Cidade Baixa. O trânsito é caótico, como em qualquer centro de cidade. As pessoas sobem e descem através do Elevador Lacerda, do Plano Inclinado (um bondinho) ou das poucas ladeiras. A Ladeira da Montanha é desaconselhável para pedestres antes da noite cair. Depois, é aconselhável somente a quem tem vocação para aventuras perigosas a baixo preço.

A Castro Alves não é exatamente uma praça. Não tem bancos, jardim ou árvores. E é inclinada. No meio da praça, a estátua do poeta com o braço levantado, declamando uma eterna poesia à cidade. Em frente à estátua, do outro lado da rua, o Cine Glauber Rocha. Como em Salvador tudo é permitido, é na Praça Castro Alves que duas ruas paralelas entre si, a Avenida Sete de Setembro e a Rua Carlos Gomes, se encontram. Na esquina desse encontro, o Edifício Sulacap. Na parte térrea do edifício há (ou havia) uma lanchonete. Era ali que comprava as cervejas em lata para ir apreciar a baía do alto, sentado no muro atrás do Poeta.

Num daqueles ensolarados dias de Salvador, decidi bisbilhotar um dos muitos sebos da região, aguardando um cliente com quem almoçaria. Essa foi a primeira vez que a vi. Uma mulher negra completamente nua, com as roupas cuidadosamente dobradas que ela mantinha contra o peito. Talvez numa lembrança do carinho que deveria haver com os cadernos e livros no tempo de escola.

Sempre por volta do meio-dia, ela atravessava a praça, vindo da direção da Montanha e descendo as escadas atrás do Cine Glauber Rocha, em direção à Baixa dos Sapateiros (uma versão baiana da paulistana 25 de Março), completamente nua. De onde viria e para onde iria? Muita gente sequer ouvira falar dela. Outros, nem acreditavam.

Caminhava decidida mas tranqüila. Se estivesse vestida seria somente mais uma secretária ou funcionária de banco, que passaria despercebida. Não havia nada que fizesse supor sofrimento ou constrangimento. A Praça era a sua casa e ela acabara de tomar banho, ou estava se preparando para sair. Não via ninguém e ninguém a via.

Após conviver tanto tempo usando roupas e aceitando as regras da sociedade sem questioná-las, confesso que realmente me intriga a idéia de alguém nu, no meio da cidade, em plena luz do dia. Mas a Praça Castro Alves realmente é do povo e, considerando o cinema, a estátua, o autor da música a quem pertence a frase lá no alto e freqüentadores daqueles arredores como esse escriba amador, diria que ela freqüentava o lugar certo. E que estava em boa companhia.

Allan

1 Comments:

Blogger Milton said...

Gostei. Por que os blogs coletivos não dão certo? Participo de um que é um marasmo...

15 de setembro de 2005 às 15:29  

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