Nicolau
Era um embaixador das antigas. Muitos o chamavam Comendador. Usava ternos impecáveis, gravatas extremamente sóbrias, sapatos italianos feitos à mão sempre lustrados. Abotoaduras. O eterno sorriso mostrava todos os dentes perfeitos. Sempre. Nas mãos, além da aliança e de um relógio clássico, o inseparável charuto. A sua simpatia permitia-lhe brincar com quem quer que fosse sem tornar-se inconveniente. Era especialista em brincar com moças desconhecidas.
Nicolau não era louco. Não era nem mesmo um embaixador, nem sei se era realmente comendador ou que comenda teria recebido. Era um amigo de família. Tinha um escritório na Rua da Consolação, no centro de São Paulo. No mesmo primeiro andar, na porta ao lado da sua, alugou-nos as salas onde funcionava o escritório da empresa de reformas.
Houve época em que era conhecido como "O Paxá dos Cadillacs". Cada vez que ia aos Estados Unidos comprar um lote dos carrões, escolhia os melhores hotéis e costumava presentear as telefonistas onde se hospedava com anéis de brilhantes. Numa das viagens chegou a distribuir vinte anéis. No último dia antes de entrar em vigor uma lei que proibia a importação dos seus carrões, o funcionário da alfândega o chamara, pela manhã, para informar-lhe que deveria ir retirar o último lote antes da meia-noite, ou o governo os confiscaria. Bastava assinar a papelada, retirar os carros do depósito e estacioná-los do lado de fora. Coisa de uma hora. Nicolau foi a uma festa, a um espetáculo teatral, a um jantar e esticou a noite em algum lugar. No dia seguinte, acordou tarde, tomou café e permitiu que a imprensa o fotografasse na banheira, com o imperturbável sorriso e o inseparável charuto. Havia perdido uma fortuna.
Numa das muitas vezes que foi a nossa casa, um apartamento num vigésimo quarto andar da Avenida Paulista, Nicolau encantou-se com um quadro que meu pai acabara de pintar. "Dorival, me vende esse quadro". Meu pai se recusou: "Esse quadro não está à venda." Escolha outro. Nicolau não queria outro, queria aquele. Nas semanas seguintes ele tentava uma investida, levava-nos os deliciosos kibes e esfihasque sua mulher fazia, escolhia uma garrafa de whiskie especial, oferecia almoços, mas meu pai não cedia. Numa noite, numa das insistentes visitas, Nicolau perdeu um pouco da amabilidade.
-- Dorival, somos amigos há muito tempo. Você vende todos os quadros que pinta. Por que não quer vender esse? Vende pra mim, que sou seu amigo.
Mas meu pai permanecia irredutível:
-- Esse quadro não está à venda!, sentenciou rindo.
-- Eu já tentei de tudo e você não me vende. Acho que você está querendo testar a nossa amizade e isso não me agrada. Ou você me dá uma boa razão para não me vender esse quadro, ou eu não divido mais o elevador com você.
-- Nicolau -- respondeu meu pai -- não posso vender esse quadro porque eu o pintei para dá-lo de presente a você.
Uma gargalhada encheu a enorme sala. Nicolau começou a falar coisas incompreensíveis em árabe. Pulava e gritava como um menino, beijava meu pai e a todos na sala. Abraçou o quadro e continuava a falar em árabe. Queria festejar, correr, chutar. Tirou um sapato, mordeu-o e jogou-o pela enorme janela de vidro fechada, espalhando cacos no jardim, vinte e quatro andares abaixo. Meu pai, que quase chorava de tanto rir, disse-lhe, ainda:
-- E mais: dou também aquele outro pra você levar de presente pra sua filha.
Nicolau gritou o que me pareceu um palavrão em árabe, tirou o outro sapato e arremessou-o pela outra vidraça. O par de sapatos italianos sumira na escuridão do jardim, de frente para a Avenida Paulista. Foi embora com o único sapato que lhe coubera: os sapatos sujos de cimento e tinta que um operário havia deixado após a reforma da cozinha. Debaixo do braço, os dois quadros. Acendeu um charuto dentro do elevador e, antes que a porta se fechasse, ofereceu-nos o mais belo sorriso do mundo.
Allan