BALADA DO LOUCO

This is the strangest life I have ever known.

quarta-feira, junho 15, 2005

Nicolau

Era um embaixador das antigas. Muitos o chamavam Comendador. Usava ternos impecáveis, gravatas extremamente sóbrias, sapatos italianos feitos à mão sempre lustrados. Abotoaduras. O eterno sorriso mostrava todos os dentes perfeitos. Sempre. Nas mãos, além da aliança e de um relógio clássico, o inseparável charuto. A sua simpatia permitia-lhe brincar com quem quer que fosse sem tornar-se inconveniente. Era especialista em brincar com moças desconhecidas.

Nicolau não era louco. Não era nem mesmo um embaixador, nem sei se era realmente comendador ou que comenda teria recebido. Era um amigo de família. Tinha um escritório na Rua da Consolação, no centro de São Paulo. No mesmo primeiro andar, na porta ao lado da sua, alugou-nos as salas onde funcionava o escritório da empresa de reformas.

Houve época em que era conhecido como "O Paxá dos Cadillacs". Cada vez que ia aos Estados Unidos comprar um lote dos carrões, escolhia os melhores hotéis e costumava presentear as telefonistas onde se hospedava com anéis de brilhantes. Numa das viagens chegou a distribuir vinte anéis. No último dia antes de entrar em vigor uma lei que proibia a importação dos seus carrões, o funcionário da alfândega o chamara, pela manhã, para informar-lhe que deveria ir retirar o último lote antes da meia-noite, ou o governo os confiscaria. Bastava assinar a papelada, retirar os carros do depósito e estacioná-los do lado de fora. Coisa de uma hora. Nicolau foi a uma festa, a um espetáculo teatral, a um jantar e esticou a noite em algum lugar. No dia seguinte, acordou tarde, tomou café e permitiu que a imprensa o fotografasse na banheira, com o imperturbável sorriso e o inseparável charuto. Havia perdido uma fortuna.

Numa das muitas vezes que foi a nossa casa, um apartamento num vigésimo quarto andar da Avenida Paulista, Nicolau encantou-se com um quadro que meu pai acabara de pintar. "Dorival, me vende esse quadro". Meu pai se recusou: "Esse quadro não está à venda." Escolha outro. Nicolau não queria outro, queria aquele. Nas semanas seguintes ele tentava uma investida, levava-nos os deliciosos kibes e esfihasque sua mulher fazia, escolhia uma garrafa de whiskie especial, oferecia almoços, mas meu pai não cedia. Numa noite, numa das insistentes visitas, Nicolau perdeu um pouco da amabilidade.

-- Dorival, somos amigos há muito tempo. Você vende todos os quadros que pinta. Por que não quer vender esse? Vende pra mim, que sou seu amigo.

Mas meu pai permanecia irredutível:

-- Esse quadro não está à venda!, sentenciou rindo.

-- Eu já tentei de tudo e você não me vende. Acho que você está querendo testar a nossa amizade e isso não me agrada. Ou você me dá uma boa razão para não me vender esse quadro, ou eu não divido mais o elevador com você.

-- Nicolau -- respondeu meu pai -- não posso vender esse quadro porque eu o pintei para dá-lo de presente a você.

Uma gargalhada encheu a enorme sala. Nicolau começou a falar coisas incompreensíveis em árabe. Pulava e gritava como um menino, beijava meu pai e a todos na sala. Abraçou o quadro e continuava a falar em árabe. Queria festejar, correr, chutar. Tirou um sapato, mordeu-o e jogou-o pela enorme janela de vidro fechada, espalhando cacos no jardim, vinte e quatro andares abaixo. Meu pai, que quase chorava de tanto rir, disse-lhe, ainda:

-- E mais: dou também aquele outro pra você levar de presente pra sua filha.

Nicolau gritou o que me pareceu um palavrão em árabe, tirou o outro sapato e arremessou-o pela outra vidraça. O par de sapatos italianos sumira na escuridão do jardim, de frente para a Avenida Paulista. Foi embora com o único sapato que lhe coubera: os sapatos sujos de cimento e tinta que um operário havia deixado após a reforma da cozinha. Debaixo do braço, os dois quadros. Acendeu um charuto dentro do elevador e, antes que a porta se fechasse, ofereceu-nos o mais belo sorriso do mundo.

Allan

sexta-feira, junho 10, 2005

Aerolinhas Tabajara

A Aerolinhas Tabajara era, como se pode adivinhar pelo nome, uma empresa de aviação. Restrita ao Aeroporto da Pampulha, tinha apenas um funcionário, um certo comandante cujo nome não consegui identificar pelo crachá. Não possuía aviões. Nem mesmo uniforme seu funcionário usava. Como não havia vôos, o piloto da empresa – que passo a chamar de Comandante Tabajara - gastava as tardes sentado numa das poltronas do saguão do “Pampulha”. Quieto, calado, o olhar meio vago, um jeito desamparado. O ar de sossego triste que vem de uma espera longa e indefinida.

No dia em que o vi pela primeira vez – foi num ônibus -, não sabia que se tratava de um piloto de aviões. Imagina-se que esses sujeitos não precisem usar o transporte coletivo, mas até então eu nem suspeitava que havia exceções como aquela. O único funcionário de uma empresa aérea sem aviões jamais teria dinheiro para usar um meio de transporte mais confortável. Eis a figura: estatura baixa e o cabelo paradoxal, parecendo peruca, parecendo verdadeiro. Roupa com estampa militar ou uma camisa jeans sem mangas. Tatuagem no braço, uns 55, 60 anos. Bonezinho sobre o misterioso penteado e aquele ar de desamparo.

Em meu percurso para o trabalho, eu o via algumas vezes. Ele sempre tomava a condução na região da Lagoinha, já na avenida Antônio Carlos, principal ligação do centro da cidade à Pampulha. Como eu descia antes do aeroporto, não sabia para onde aquele ser humano curioso se dirigia. Acabei deixando o emprego – redigi minha própria carta de alforria - e nunca mais vi Tabajara.

Uns talvez três anos mais tarde, fui morar na região da Pampulha, bem perto do aeroporto. E eis que, num sábado de setembro de 2003, eis que o comandante entra no ônibus. Naquele dia descobri que ele ia ao encontro dos “bichões” de asas, mas ainda não sabia que estava diante de um peculiar piloto de aviões.

A descoberta se deu dias depois, quando o encontrei no saguão do aeroporto. A camisa jeans sem mangas, a tatuagem já desbotada no braço esquerdo, o crachá impresso de forma tosca, pregado sobre o coração: Aerolinhas Tabajara / Comandante (?). Não querendo ser indiscreta, tratei de examiná-lo com velocidade supersônica, fato que me impediu a identificação de seu nome. Ele sentado, esperando como os passageiros. A diferença é que a chamada para seu vôo nunca vinha.

Eu o vi mais umas quatro vezes naquela condição de quem só espera, e espera só. Sempre à tarde. Trabalhava no turno vespertino, pelo visto. O tempo foi passando; eu passando pelo aeroporto e notando sua ausência. Desapareceu, simplesmente. Acho que a Aerolinhas Tabajara acabou falindo por falta de aeronaves, de funcionários, de uniformes, de lanche para os passageiros, de passageiros. Ou talvez ele, cansado de esperar, tenha pedido demissão, o que fundo é a mesma coisa: Tabajara era a empresa e era ele.

Já que ignoro a verdade, prefiro pensar que o vôo imaginário que ele tanto aguardou tenha, enfim, chegado. De uma coisa tenho quase certeza: aquele é um piloto que nunca pôs os pés em um avião de verdade. E, se eu estiver certa, é uma pena.

A louca e o poeta

A Praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião.

Salvador tem um centro divido em duas partes: a Cidade Alta e a Cidade Baixa. O trânsito é caótico, como em qualquer centro de cidade. As pessoas sobem e descem através do Elevador Lacerda, do Plano Inclinado (um bondinho) ou das poucas ladeiras. A Ladeira da Montanha é desaconselhável para pedestres antes da noite cair. Depois, é aconselhável somente a quem tem vocação para aventuras perigosas a baixo preço.

A Castro Alves não é exatamente uma praça. Não tem bancos, jardim ou árvores. E é inclinada. No meio da praça, a estátua do poeta com o braço levantado, declamando uma eterna poesia à cidade. Em frente à estátua, do outro lado da rua, o Cine Glauber Rocha. Como em Salvador tudo é permitido, é na Praça Castro Alves que duas ruas paralelas entre si, a Avenida Sete de Setembro e a Rua Carlos Gomes, se encontram. Na esquina desse encontro, o Edifício Sulacap. Na parte térrea do edifício há (ou havia) uma lanchonete. Era ali que comprava as cervejas em lata para ir apreciar a baía do alto, sentado no muro atrás do Poeta.

Num daqueles ensolarados dias de Salvador, decidi bisbilhotar um dos muitos sebos da região, aguardando um cliente com quem almoçaria. Essa foi a primeira vez que a vi. Uma mulher negra completamente nua, com as roupas cuidadosamente dobradas que ela mantinha contra o peito. Talvez numa lembrança do carinho que deveria haver com os cadernos e livros no tempo de escola.

Sempre por volta do meio-dia, ela atravessava a praça, vindo da direção da Montanha e descendo as escadas atrás do Cine Glauber Rocha, em direção à Baixa dos Sapateiros (uma versão baiana da paulistana 25 de Março), completamente nua. De onde viria e para onde iria? Muita gente sequer ouvira falar dela. Outros, nem acreditavam.

Caminhava decidida mas tranqüila. Se estivesse vestida seria somente mais uma secretária ou funcionária de banco, que passaria despercebida. Não havia nada que fizesse supor sofrimento ou constrangimento. A Praça era a sua casa e ela acabara de tomar banho, ou estava se preparando para sair. Não via ninguém e ninguém a via.

Após conviver tanto tempo usando roupas e aceitando as regras da sociedade sem questioná-las, confesso que realmente me intriga a idéia de alguém nu, no meio da cidade, em plena luz do dia. Mas a Praça Castro Alves realmente é do povo e, considerando o cinema, a estátua, o autor da música a quem pertence a frase lá no alto e freqüentadores daqueles arredores como esse escriba amador, diria que ela freqüentava o lugar certo. E que estava em boa companhia.

Allan

quarta-feira, junho 08, 2005

Betito e o ganso

Louco ímpar. Díspar. USP, 1979, janeiro quente.

Uma fila enorme de inscrição para cursos alternativos dentro de Letras. Eu (louca como tantos outros) na fila para tupi-guarani.

Uma cena bizarra: Betito (ele sempre foi chamado assim, acho que nem tinha mais nome), um garotão de seus 19 anos, jeans largo, camisa branca com botões abertos, alpargata rueda e uma coleira com guia. Na coleira o que??? UM GANSO. Branquinho, aprumado, bem do lado.

Onde ia Betito, lá estava o ganso. No banheiro, no refeitório, nos shows do Beto Guedes, na Poli, nas piscinas...sempre os dois, unidos e combinados
como feijão com arroz.

Isso faz tempo, mas nenhum de nós perguntou ao Betito "POR QUE ESSE GANSO PRA CIMA E PRA BAIXO?". Interessantissímo ressaltar que o ganso do Betito (ô loko), só parava mesmo pra ouvir o Arnaldo Antunes recitar poesias em cima do banco, com aquela cara de maluco, com suas calças em tecido cru, com bata combinando, sandalhões e olhos atentissimos aos movimentos do... ganso.

Lembro com certa importância que nenhum de nós pegou seu diploma: tupi-guarani, sânscrito, hebraico ou latim eram linguas para pessoas normais...rs

Soraya

quarta-feira, junho 01, 2005

Casal maluco-beleza

Na Centraal Station, em Amsterdam, um verdadeiro mundo, que logo eu dominaria. Com aquele maldito peso e a mochila que não caberia num locker, acabei rodando de um lado pro outro pra achar abrigo, já que minha reserva no albergue Vondelpark era só depois...

Achei mesmo que ia conseguir, como minha amiga falara, vaga nos outros albergues; sinistro. Tudo cheio. O maldito barco hostel que eu tinha cismado era uma fortuna e eu ainda não conhecia ninguém para dividir o tal quarto... Definitivamente eu não iria pagar 200 euros no meu primeiro dia na Europa...

Sorte que a noite só caía pra lá de oito e meia. E esta hora, na minha calma providencial dos melhores/piores momentos, eu estava sentada em frente à Central de Turismo, do outro lado da Centraal Station, fumando. Nem o ponto de guia para turistas estava aberto. Foi quando apareceu o maluco. Figuraça; "Benji".

Um baixinho de lindos olhos azuis. Malandro que só. Chegou perguntando se eu estava procurando lugar pra passar a noite. E eu fumando.

Sim, eu quero. Tô sem acomodação. O Vondel não tem vaga agora. Quer ir lá pra casa? A gente recebe pessoal como você.

Incrédula, após muita insistência, olhei o álbum que ele tinha com fotos e dedicatórias, inclusive de brasileiros.

Ele falava, mas o inglês era sofrível, ele era do Irã originalmente e eu ainda não estava propriamente acostumada a isso (500 mil sotaques diferentes...imagina...).

Papo vai, papo vem. Não sei se estou entendendo... mas o papo era de que eu tinha olhos especiais, alma não sei o quê! Quando falei que era escritora então, ferrou...ele era escritor também... Enfim, acabei indo.

No meio do caminho, entendi que se eu não quisesse pagar pelo quarto, eu podia “ficar” com eles (ele e a esposa) num menage à trois, porque ele tinha gostado muito de mim... O quê?, pensei eu... Não devo estar entendendo... Estava sim... Então me esforcei em dizer que eu só queria um lugar pra passar a noite. Desisti já no caminho. De novo.

Ainda fui procurar um lugar pra ficar. Onde diabos eu ia passar a noite? Já estava praticamente escuro e eu estava cansada. Eu ria que era uma beleza... Convite pra suruba na primeira noite, isso vai ser ótimo !!!! Já tinha esquecido como era bom viajar sozinha...

Eis que encontro o Benji de novo. Agora com a esposa, que ele tinha chamado; "Lia". Uma morena, alta, da Armênia, Argélia, sei lá, nessa altura já não sei mais.... Memória também não é o meu forte... Cool.

Então o casal tentou me convencer pro menage à trois... Não, não quero. Só um lugar pra passar a noite. Muita insistência. Se você não quiser, pode só passar a noite... E lá fui eu, depois de tanta lenga lenga, só para conhecer o lugar, como quem não quer nada....

Fui andando com a menina, Lia. O Benji continuou procurando pessoas diferentes, especiais, como ele dizia... Malucos como eu que fui, pensei eu naquele momento... Incrivelmente, parecendo me conhecer e ter certeza que eu ia ficar lá – deviam ser os meus olhos- ela foi mostrando o caminho por meio de lugares, parte de trás da Centraal, barca da esquerda ( uma baía linda, diga-se de passagem).

Conversa, conversa. Atravessa a baía. Prédio do lado tal. Rua tal. Blah Blah. Esquerda. Barco Amarelo. Rua Tal. Casa com não sei o quê na porta. Chegamos.

Bom, é agora. Entrei, super aconchegante. Quarto legal. Está aqui sua chave, ali é o banheiro, que você faz da vida, eu pinto, eu escrevo, gosto de bichos, tenho isso...

E então eu fui tomar banho... Embora pra quê? Quer saber, eles devem ser legais... No outro dia, eu iria embora bem cedo. E eu tinha a chave do quarto pra todos os efeitos. Tomei banho e saí. Fim da primeira parte da história.

***


Fui então, livre daquele peso, quase me sentindo em liberdade, dar uma volta. Sem mapa, sem nada. Eu me admiro de não ter me perdido. Parei num coffee shop, claro !!!! E aí, D Ro???? Só podia ter me lembrado desta minha grande amizade brasileira, que há tanto não vejo, está sumida no mundo...

A louca aqui, quando se deu conta, estava tarde da noite no Red Light District, mais um pouco e iam pensar que era um puta abusada saindo detrás do vidro...

Estava cansada e ligeiramente chapada e resolvi voltar. Era cedo. Menos de uma hora da manhã. E eis que encontro o Benji.

Está indo pra casa? Gostou de lá? Sim, gostei e tô indo descansar porque estou cansada. Ah, acho que não vou encontrar mais ninguém hoje, vou com você. Agora fodeu, literalmente. Foi o que pensei e ri interiormente... Rir de tudo, inclusive de si mesmo, é quase uma arte...

Fomos nós conversando na barca, maior barato, um vento, um frio que “te direi”...Eu estava congelando. Por isso, quando chegamos, entramos em casa e “eles me vêm com ‘quer vinho’ ”, “quer uísque”, pareceu um oásis...

Neguinho falou: “coitados, deviam estar querendo embebedar você”. Não creio... que fosse!!! Anyway, eu estava bebendo... como zoaria a Thais sobre o uísque duplo, algum tempo depois, in London... Ela dizia que, para me conquistar, bastava me dar um copo. É zoação, gente, sou alcoólatra somente em potencial...

As surpresas continuaram. Ouvi altas histórias. Vi várias fotos e dedicatórias. Galera bem doida. E adivinha? Ao som de Maria Bethânia. Sim, eles, os primeiros, adoravam o Brasil e tinham várias músicas de lá/ daqui.

E assim foi a primeira noite. Dia seguinte? Tomei um maravilhoso café da manhã, ao meio dia, quando eu ainda estava lá.... AAAAAAAAAAAAAhmsterdam...

Daniele Sorris