Lendas bandeirantes
Em São Paulo, cidade grande, conheci alguns personagens lendários. Quem acha que metrópoles estão longe da capacidade de gerar lendas, não conhece São Paulo. Quanto maior a cidade, maior o número de lendas. Aumenta, também, a possibilidade de tais lendas terem uma projeção superlativa, como pede a própria geografia da cidade.
Durante todo o tempo em que vivi em Sampa (você é daqueles que se incomodam quando dizem Sampa? Eu também!), pude desfrutar de encontros ocasionais com o Coreano. Nós o chamávamos Coreano, mas na realidade ninguém sabia dizer se realmente fosse coreano, chinês ou japonês. Para nós, era o Coreano. Tinha o cabelo engomado, penteado e preso por grampos à nuca. Usava um terno preto surrado, não falava uma palavra em português, andava de bicicleta e mostrava um cartaz onde pedia dinheiro para voltar ao país dele. O problema é que o cartaz também estava escrito numa língua oriental. Como é que sabíamos que no cartaz estava escrito um pedido de dinheiro? Não sabíamos! Dávamos algum dinheiro e ele ia embora resmungando.
Havia um rapaz negro, uns vinte e cinco anos, roupas esfarrapadas mas espalhafatosas. Usava um capacete de operário e óculos escuros. Mas não trabalhava. Não podia trabalhar: passava o dia inteiro subindo e descendo a Rua Augusta em uma bicicleta, com um apito que ele não parava de assoprar. Se alguém atrapalhasse sua passagem, parava, gesticulava como um guarda de trânsito e apitava de modo ensurdecedor. Sumia em dias de chuva e no período do Natal, quando acarpetavam a Rua Augusta: carpete sujo de óleo escorrega mais que asfalto molhado. Maluco, não bobo.
Outra figura enigmática era a Mulher de Roxo. Não sei dizer se fosse doida ou não, mas era uma verdadeira lenda. Ninguém jamais a vira acordada. Ou, quem a viu, não a reconheceu. Podia ser vista dormindo sentada nos pontos de ônibus, com a cabeça apoiada nos próprios seios. Fartos seios. Usava roupas roxas e tinha sempre uma sacola em cada uma das mãos e não era vista de noite. Quando você for a Sampa, observe os pontos de ônibus. Ela ainda deve estar lá.
Em Assis, interior de São Paulo, existem algumas dessas lendas. Pra falar a verdade, Assis é a cidade com a maior concentração desse tipo de lenda que eu conheço. Deve ser a água. Tem uma doida de Assis que -- loucura das loucuras! -- casou-se comigo. Tranqüilo: também bebi daquela água. Voltando às lendas, em Assis tem o Milionário, um sujeito coberto de correntes e relógios de ouro, com chapéu e pinta de fazendeiro e que só conversa sobre seus investimentos de milhões de dólares -- "Que real é dinheiro de pobre!" Onde cair morto, tem. Não tem é onde viver.
Voltando para Sampa e, loucuras àparte, meu personagem preferido era o Jacaré. O mais simpático e conhecido integrante do Exército da Salvação, o carismático Jacaré rodava todos os bares da cidade angariando fundos para a instituição. Sentava, conversava, contava piadas e ria das nossas. Muitos dos mais importantes bares e restaurantes da cidade mantinham sua foto próximo à entrada, informando que aquela era sua área. Depois da sua morte, muitos restaurantes e bares mantiveram a foto. Jacaré faz parte da história contemporânea de Sampa, que ficou menos simpática desde que ele se foi.
Allan