BALADA DO LOUCO

This is the strangest life I have ever known.

segunda-feira, janeiro 31, 2005

Aliens

Jorge, aliás, Jorjão, era realmente muito alto. E forte. Quando alguém ousava contrariá-lo, gritava: "Olha que eu sou louco! Não respeito ninguém. Arrebento tudo!" Mas não era louco coisa nenhuma. Apenas se aproveitava do seu tamanho para intimidar todos. No cartório do fórum, onde trabalhava, gritava até com o juiz. E todos tinham medo dele. Principalmente quando gritava "...sou louco! ...arrebento tudo!" Ficava vermelho e parecia aumentar de tamanho. Gesticulava os braços e caminhava em direção às pessoas.

Sua mulher pedia que ele se acalmasse e entrava nafrente, tentando impedir que ele avançasse sobre as pessoas. Ele a empurrava e ficava mais vermelho ainda. E gritava. "Olha que eu sou louco..."

Um dia, acordou chorando: "tenho medo..." e ninguém conseguiu descobrir do quê. Nunca mais foi o mesmo. Foi internado. Quando os hospícios fecharam, sua mulher levou-o para casa. Não é perigoso, pode ser tratado em casa. Passa os dias sentado, cabeça e ombros encolhidos. Às vezes chora. Não é mais Jorjão, só Jorge. É louco e não assusta ninguém.

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Dunga era um hippie. Alto, forte e manso. Paz e amor, bicho. Conheci-o no início dos anos setenta, quando ele fugia da clínica que recuperava viciados em drogas. Não era exatamente maluco, mas creio que as substâncias que ele consumiu provocaram uma mudança nas suas capacidades mentais. Fugia da clínica às sextas, dava umas voltas, consumia álcool ou outra coisa e era recuperado no sábado ou no domingo, antes do horário de visitas. Era uma verdadeira enciclopédia do rock. Sabia tudo sobre a história do rock e seus principais personagens. Dedilhava a guitarra imaginária de Hendrix e imitava a voz rouca de Janis Joplin: "Oh, Lord, won't you buy me a Mercedes Benz"...

Quando terminou seu período na clínica, continuou morando no Embu. Dizia estar fora das drogas, mas os efeitos eram irreversíveis. Fazia flautas de bambu como ninguém e as vendia na feira de artesanato aos domingos. As flautas tinham uma afinação perfeita. Certa vez sua filha foi visitá-lo. Era advogada ou arquiteta. Mas ele havia rompido com o passado. Abraçou a filha e o marido dela. Passeou de mãos dadas. Chorou. Mas jamais foi procurá-los na vizinha São Paulo.

Dunga tinha uma sua casinha, fazia um pouco de dinheiro, mas gostava mesmo era de passar o dia perambulando, pedindo esmola e dormindo no banco da praça. Às vezes alguém se irritava e batia nele. Chorava e corria para a padaria, onde o proprietário o protegia, além de dar-lhe comida e uma cachacinha. Era incapaz de fazer mal a uma mosca. Enorme, mancava da perna direita, cabelos e barba compridos. Quando ficou doente, levaram-no para o hospital e parece que aceitou ajuda da família. Depois, voltou. Perambulava por toda a parte. Às vezes incomodava mesmo. E escolheu como último leito o banco ao lado da igreja. Paz e amor, bicho.

*


Das Dores era uma mulata bem apessoada (na época, se dizia assim). Num daqueles longínquos subúrbios do Rio, morava com a família. Não a sua família, mas aquela que a havia adotado. Fora acolhida um dia, ainda menina, quando eles cansaram de vê-la dormir sob a marquise da quitanda (na época, tinha quitanda). Ninguém nunca soube de onde ela apreceu. Nem ela. Só sabia o próprio nome: Das Dores. Das Dores ria sempre. Jamais usou as palavras morte, doença ou qualquer outra que pudesse transmitir tristeza ou sofrimento. Apesar disso, fazia comentários que nos permitia entender suas crenças. Quando assistia televisão e aparecia algum ator jovem, dizia: "Tadinho, tão novinho..." A caixa barulhenta que tocava música era a ligação deste mundo com o dos mortos. Quando alguém morria, ia pra lá. O vizinho morrera num domingo, em meio ao programa do Chacrinha (na época, o Chacrinha tinha um programa). No domingo seguinte, apesar do medo que ela tinha do Chacrinha, foi assistir à TV porque queria ver o vizinho, que sempre lhe fora gentil. Não a deixavam usar saias curtas, pois sentava de qualquer jeito. Mas não usava calça comprida de jeito nenhum. Ajudava na arrumação da casa e aprendeu a cozinhar como poucos.

Quando visitava o pessoal do subúrbio, me divertia batendo papo com Das Dores, que não falava coisa com coisa. "Moço, você viu aquela música nova que tá tocando no rádio? Eu que fiz. Mas não quero mais não porque agora tá na caixa. Você já namorou? Quando eu crescer, vou arrumar um homem bem bonito pra casar." Mas ela já era crescida, apesar de moça (na época, existiam moças). E ria o tempo todo. Uma felicidade infantil e contagiante. Um rosto bem feito e olhos grandes. Dizem que ela não envelheceu nem um dia. Continua com a aparência jovem de sempre.

Allan